13 maio, 2004

Marina

Os dias andavam particularmente vazios; ela procurava coisas para fazer. Dedicava-se com suspeito afinco as atividades mais banais do dia, como preparar o almoço, arrumar a mesa, escolher um copo de haste comprida para despejar a bebida. Poderia ficar horas arrumando e desarrumando tudo aquilo, cuidadosamente. Não se permitia nenhum tempo a mesa apos a refeição acabada – levantava-se rápida para levar a louca suja da sala rumo a cozinha.

E assim suas semanas eram preenchidas, ainda que alguns pensamentos teimassem em interferir em sua rotina organizada, lembrando-a dos perigos daquele estranho ócio. Mas sabia ludibriá-los e logo descobria uma estante de livros em seu escritório para reorganizar.

Em um desses dias, estava no meio de mais uma de suas refeições silenciosas - um desjejum com café preto, torradas, frutas cuidadosamente cortadas – quando percebeu que o carteiro enfiava a correspondência por debaixo da porta. Ouviu-as deslizando pelo piso de madeira; contas, pensou.

No breve instante que sucedeu o deslizar da correspondência pelo chão da casa, ela já estava tomada por infinitos pensamentos. E com a mão na asa da xícara de café, que restava imóvel no ar (no caminho entre a mesa e sua boca), percebeu; não sentia fome alguma.

Levantou-se contrariada, pensando em como aquele episodio havia estragado seu café da manha, quando notou, nas cartas espalhadas pelo chão, um exemplar escrito a mão – letras magras e corridas pendendo para a direita, as palavras desenhadas em azul. Não pode reconhecer a caligrafia de imediato, mas, ao rasgar o envelope para subtrair-lhe o conteúdo, já sabia – aquela era uma carta de L.




Luís

Cara Marina,
Ainda não descobri como escrever essa carta. Andei tateando a melhor forma, mas não a encontro. Escrevo-lhe, então, nesse meu jeito, com essas palavras...
Quis muito procura-la, mas desisti. Imagino, por tudo o que aconteceu, que você não queira me ver. Portanto, acho que essa é a melhor maneira de lhe falar.

Estou de mudança. É temporário; ficarei uns tempos com Beatriz em Florianópolis ate resolver o que fazer. Ela está reformando sua casa e parece estar bastante contente com a vida na nova cidade. Poderei conhecer seu marido, afinal. E estou contente por isso; estou contente, Marina, depois de tudo.

Beatriz não sabe dos episódios ocorridos em Niterói e não contarei a ela. Peço-lhe, por favor, faça o mesmo.

Quero que saiba (esse é o principal propósito dessa carta) que não fui eu, Marina. Não fiz aquilo. Não poderia nunca tê-lo feito, nunca. Espero, sinceramente, que acredite em mim.

No mais, desejo-lhe sorte.
Adeus,

L.


11 maio, 2004

sede


Um dia sentiu que haviam desistido dele. Assim, de repente, enquanto pensava em nada, na frente da televisão. Foi se desesperando em silêncio, muito quieto, no sofá. Quem o olhasse jamais desconfiaria. Mas depois pensou (e falou alto para si) - que besteira.

Ainda tentou prestar atenção no programa, mas as imagens entravam vazias pela retina. Foi quando sentiu um calor repentino e, ao se levantar para pegar um copo d´água na cozinha, pensou que talvez fosse bom checar a caixa postal do celular. Foi direto ao telefone, já sem sede.

Ligou para seu número e enquanto ouvia sua voz pedindo que lhe ligassem mais tarde, sentiu um frio na barriga. Desejou desesperadamente que alguém lhe tivesse procurado; como seria bom retornar algum telefonema, como seria bom escutar uma voz conhecida.

Mas tudo o que ouviu foi um tom de voz metálico na frase "todas as suas mensagens já foram checadas".

10 maio, 2004

tempestade

Para driblar a mente inquieta, abriu a caixa de fósforos. Ficou a caçar palitos inúteis, já riscados, tentando pôr ordem em alguma coisa.

Sentada em uma mesa mais afastada no café, não conseguia se concentrar na leitura de um livro excepcional, que teria lido de uma vez, sem qualquer interrupção, se o houvesse descoberto meses antes. Talvez fossem as folhas muito grudadas e a encadernação mal feita, mas o fato é que ela não conseguia focar em coisa alguma por mais de cinco minutos.

Bebeu o café em poucos e fartos goles, já pensando que sua falta de concentração o largaria sobre a mesa por muito tempo e o esfriaria.
Aquele vento de fim de tarde ganhava velocidade, anunciava uma tempestade. E ela se arrependia do vestido curto e sem mangas que havia escolhido para aquele dia.

Vestia preto (as botas, os óculos e o tal vestido curto). Não estava sociável e a cor a vestiu como um prenúncio daquele isolamento propositado, que a escondia entre estranhos em uma mesa de canto de um lugar qualquer.

O passar das horas aumentava a expectativa (e com ela, terríveis frustrações) por um telefonema que não chegava; o telefonema que poria luz em seu corpo vestido de preto, em seu juízo já quase inteiro em sombras, que ainda tentava compreender, com um resto de serenidade (e que falhava), aquele silêncio que a tornava muito esquecida naquele café.

Observou uma moça sentada a poucos metros de sua mesa, que ora a olhava, ora lia seus textos. Talvez tentasse compreender-se, pensou, em sua imagem escura. No entanto era ela que tentava se ver naquela estranha, tão estranha que vestia verde claro.

Em sua mesa havia livros, bolsa, folhas de caderno, tudo espalhado, em desordem.
Seu olhar estava escorregava pelos livros, pelo celular (que ela checava com freqüência). Talvez também esperasse por um telefonema.

Ou ainda (e é muito mais provável), ela tentava apenas estudar (como as muitas outras pessoas com seus livros e pastas nas mesas em nossa volta). E o celular a certificava das horas; ela deveria ter um teste no fim daquela tarde. E estaria pensando nessa prova, que iria lhe dar, afinal, o diploma da faculdade.

Absorvida por esses pensamentos, se sentiu subitamente só.

Despertou com vento já mais frio e mais veloz e pensou na chuva que viria.
Fechou seu livro pouco lido, pegou suas chaves, os óculos. Deixou o café com o celular em punho, ainda esperando que no caminho para o carro ele pudesse tocar.