30 setembro, 2005


(...) "... Todos os poemas são canções de eco, procuram ser confirmados. De que sítio se lança a voz, que género de confirmação se pretende? A confirmação, sempre, do poema a si mesmo e em si mesmo."
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"(...) E começa então a entrever-se que a voz se não dirige propriamente a alguém mas procura constituir-se numa ordem da alma: propõe enigmas, formula um voto redentor. Porque alguém escuta dentro do poema que fala e essa instância, que pode ou não prolongar-se para o exterior, é salva pela voz como a voz é salva pelo íntimo ouvido que a recebe. (...) Quanto ao mundo, o poema espera tudo dele menos o equívoco, embora seja o equívoco aquilo que se encontra mais à mão do mundo."
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"(...) Só é seguro que a pergunta, a procura, o poema reincidente, cristalizam numa grande massa translúcida, um bloco de quartzo. Talvez seja tranquilizador quando olhado defronte, ali, no chão, do tamanho da casa; parece nascer ininterruptamente. A luz vem de dentro, funda e aguda luz terrestre. Excretou-se de nós, a massa cristalina, fundimo-nos nela, carne da nossa carne, casa da nossa casa. E na hora do apocalipse biográfico, quando as águas envolverem a história, a vida, a obra da obra, veremos tudo: morremos daquilo, levados para o abismo pelo irrevocável peso extraído, um peso maior que os trabalhos e os dias. E quem sabe se não veremos então, através do cristal regular, limpidamente, a enfim aplacada confusão do mundo? Isto é uma pergunta, agora. Alimentamo-nos dela, também nos alimentamos dela. aquilo que fazemos, oh sim, é isso que nos faz e desfaz, a vida que fazemos, a nossa vida em pergunta telepática. Morremos dela."
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"(...) Nunca se sabe aquilo que basta. Talvez baste um poema, uma coisa mínima, viva, nossa, uma coisa sub-reptícia para empunhar diante do implacável acordo das formas exteriores. Também pode ser que nada baste. E nesse caso tanto faz escrever um romance ou cem poemas ou apenas um poema, ou ler ou emendar o céu astrnómico ou manter-se parado no meio de um jardim húmido e silencioso, à noite. Até pode suceder que a morte não seja bastante."

( a imagem é apenas ilustrativa. o texto foi retirado de uma entrevista publicada na revista Inimigo Rumor nº11)
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29 setembro, 2005

folhetim

I.

O livro de capa escura restava único sobre a cama. Abriu em uma página qualquer; Memória: o espaço em que uma coisa acontece pela segunda vez. Paul Auster, página 96.
Poderia levar aquele livro, mas colocou-o no mesmo lugar, com cuidado extremado - como se ela mesma tivesse ficado no meio daquelas folhas, marcando a página.

Recolher os papéis das gavetas, lembrar de revistar o quartinho nos fundos e escrever o bilhete derradeiro. Abrir as janelas, todas elas, colocar água nas plantas. O que escreveria? Não conseguia escolher as palavras.

Sentou-se na cama, passou a mão sobre a capa do livro. "As coisas estão feitas, as gavetas limpas, etc etc, passo amanhã pra deixar o dinheiro". O sol bateu no seu olho esquerdo, um filete de luz escorregava pela fresta da janela. "Passo amanhã, deixo o dinheiro num envelope na portaria, obrigado (quer dizer, obrigada), adeus". Era isso? Seco demais.

Ah, ainda tanto por fazer.

Desviou os olhos da luz, puxou uma das gavetas abarrotadas ao lado da cama, mas não recolheu nada. Só fazia reescrever as palavras na cabeça. "Deixo o livro, é presente; saudades".
Mas que coisa, que palavras tão medidas, contas pequeninas de palavras. Mania de criar gestos inversamente proporcionais às suas paixões. Queria tanto o drama, a lágrima, os silêncios suspensos! "Adeus, amor meu, tão meu! Toda a minha saudade". Sentiu um lampejo de alegria, um tremor no fundo dos olhos. Mas depois riu, quanta besteira. E foi abrir as janelas.

28 setembro, 2005

A GRAMÁTICA ALUCINATÓRIA DE WERNER HERZOG

Zunái, Revista de Poesia e Debates, apresenta em sua sétima edição um dossiê dedicado a Werner Herzog, um dos mais criativos diretores do cinema alemão, reconhecido por filmes como Fitzcarraldo e Nosferatu. Na página de entrevistas, o destaque é para Glauco Mattoso, que fala sobre o sentido da transgressão numa época regida pela violência e pelo culto à banalidade na mídia. Dialogando com poetas da América Latina e da lusofonia, Zunái traz poemas do uruguaio Eduardo Milán, da portuguesa Fiama Hasse Pais Brandão, do angolano Arlindo Barbeitos e de brasileiros como Alice Ruiz e Lígia Dabul. Na seção de debates, o tema deste número é a possível conciliação entre o lirismo e a estratégia de experimentação formal, enquanto o link de ensaios apresenta matérias sobre o neobarroco e a poética expressionista. O caderno de traduções traz poemas de Joan Brossa, Kurt Schwitters, Alejandra Pizarnik e Gottfrid Benn, e o link Galeria mostra desenhos e pinturas do escritor e artista plástico Francisco dos Santos.

www.revistazunai.com.br

Editores: Claudio Daniel e Rodrigo de Souza Leão.

Preço: inefável; inconcebível.

Distribuição: na Gran Cualquierparte.

26 setembro, 2005

A COSTURA DO INVISÍVEL

aqui dentro
a tentativa de reverter um seppuku

onde está a memória de mim
que não permaneço?

25 setembro, 2005

(APESAR DE BAMBA)

A certeza do equilibrista: a corda está sempre aqui
leitura às seis da tarde - 2


Quem me dera uma morte
como a de Don Juan
ah uma mão que me puxasse
para o escuro



[Adília Lopes em ANTOLOGIA ]

23 setembro, 2005

leitura às seis da tarde - 1


QUER VER?

Escuta


[Francisco Alvim em Poemas 1968-2000]

22 setembro, 2005

mais perguntas sem nome e sem respostas, mais herberto helder:

(...) "...vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcções o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque só se consegue isso com inocência. E se a inocência é uma condição insubstituível de escândalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui também um revés: pois há uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriámo-nos nas coisas; a inocência deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto; o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos próximos como instantâneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demoníacas, o abismo junto à dança, a noite que se vai insinuando a toda altura e largura da luz, tudo isso invade a inocência - e então já não sabemos nada, por exemplo: será inocente a nossa inocência? A inocência é um estado clandestino na ditadura do mundo; tem de ser astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar; seduz as criaturas, responde a memória com a memória, a sua fala perante o demoníaco entretece-se com a fala demoníaca. E temos assim a inocência envolvida nas turvações da guerra, e é o guerreiro quem alimenta a guerra, é ele que alimenta o outro guerreiro, a sombra. Na verdade a inocência não existe, não existe o demoníaco, senão como partes dinâmicas de um poder, e não exprimo aqui nenhuma ideia moral, política, institucional, mas uma ideia da ordem das coisas, forças e expressões. A magia, esse reino tão complexo de poder, é um casamento natural mas dramático, uma coordenada desavença de níveis de consciência, formulações do desejo, domínios da realidade, debates da pessoa com a realidade. O objecto que eu agito mortiferamente é uma arma ambígua. Como se eu estivesse metido numa espécie de guerra santa: a minha inocência é assassina. (...)"

"(...) Ora é preciso intoxicar-se com a paixão do perigo, desenvolver-se a gente dentro dessa paixão (...) A paixão é a moral da poesia: arrisquem a cabeça se querem entender; arrisquem o corpo, a sua medida, se pretendem descobrir o centro do corpo (...) De sorte que esse tal poder é o da própria paixão: ninguém consegue aventurar-se na poesia coleccionando objectos - estátuas, estatuetas; jóias, devem ser jóias vivas, olhos de leoas maternas, insuportáveis coisas que nos contemplam, morre-se de se ser assim contemplado. E então é necessária uma nobreza indizível, por exemplo: fixar de frente os olhos maternos, leoninos, e os nossos olhos ficam calcinados - o episódio, conheciam-no os antigos, dizia-se que os deuses cegavam quem os olhasse. Refiro-me a essa nobreza: como se deixássemos de ser nós mesmos, uma espécie de impassibilidade enquanto se vai ficando cego na floresta das leoas. (...)"



( na próxima semana, a terceira e última parte)
HISTÓRIA DE UM DIÁRIO

meu dedo indicador tem tinta
escrevo no ar

19 setembro, 2005

no meio do caminho ou Aos 23 anos e 4 meses


verdade instantânea
Originally uploaded by Kinzo.
(in: colaborações)

No meio do caminho, me atinei de tudo aquilo. No meio de toda a
indecisão de ir ou não ir, percebi que já não tinha escolha. Ou tinha?
O caminho estava traçado, e com letras grandes; quase impossível que
eu não visse por onde eu deveria ir. Tudo me indicava o que fazer. Mas
não sei por que aquilo tudo não me atraía mais. Antes, de longe, me
parecia um mundo atraente, prazeroso, e fácil, muito fácil. Todos
parecendo felizes - e talvez até sejam -, pessoas de sucesso, a
fórmula da felicidade na sua pura aplicação.
Teria permanecido assim se eu não tivesse pensado, se eu não tivesse
me atinado de tudo aquilo. Desejei estar ali, chegar até ali, mas
quando já ali desejei não ter visto, não ter sentido, simplesmente
queria ter seguido; como teria sido mais fácil, Deus como teria sido
mais fácil! Acho que se pudesse escolher naquela hora, optaria pela
cegueira, por não ver, ou por uma simples e forte miopia.
Bem-aventurados aqueles que não vêem, já me diziam (por que raios não
ouvi? nunca ouço). Sem dúvida a felicidade fácil mora ali, naquele
caminho seguro por onde muitos passaram. Tudo à mão, tudo na
prateleira do supermercado; a felicidade embalada para viagem... E nem
fechar os olhos consigo mais, nem isso me resta. Me vejo quase
sozinho, a solidão à flor da pele, queimando como uma ferida aberta.
Onde é que estão as pessoas?! Onde é que elas se meteram?! Não é
possível que não vejam, não vêem!
É, Marco, ao contrário do que imaginou, que difícil fazer um novo
caminho no meio da areia virgem...

Marco Kinzo Bernardy

a vida, um objeto recente


A mortalidade de sua matéria é o que
dá para começar: a ponto de permanecer
desejada encontra a pérola e o apelido.
Vida como dádiva duradoura, como foi
a do búfalo e antes, a da pantera.
Entre largos passos até cruzar a bruma
além da alvorada somada à pessoa
do pajem que pergunta pelo anfitrião.
A tempo de possuir o que nunca nasceu,
a manhão derrama lebréis de brilho,
a letra que à voz anuncia nações,
nada mais que a solução de sempre.
Chega a chuva, a rotina da água
e o ócio que por certo cai em desuso:
a lua no feno faz a planície, o
inverno ao cervo que alcança a ceder.
Por sua imundície o lugar foi reduzido,
convertido em algo como corno e aí:
a flecha conhecida ao restar cravada,
o corpo disposto pela possibilidade.
Poderia resumir-se assim: a margem das
lembranças se origina com o gerúndio e a
canção levada ao crocitar do sussurro.
Cervo, erva e logo louvam ao vento:
a casa encontra o limite desconhecido.
De toda sua estatura faz sentir ao céu.
Dorme a pele apesar do que passa.
Os olhos tomam como verdade as palavras
as coisas buscam um lugar na visão.


[poema do uruguaio eEduardo espina, encontrado em jardim de camaleões - a poesia neobarroca na américa latina, ed. iluminuras, 2004.]

18 setembro, 2005

as emanações de humanidade nas figuras nuas de lucian freud


lucian freud
Originally uploaded by
Kinzo.
É o verdadeiro conhecimento da vida que pode oferecer à arte uma completa independência da vida - uma independência que é necessária porque a pintura que nos toca nunca nos lembra meramente a vida, mas precisa adquirir vida ela própria.

L.F.

15 setembro, 2005

REMAKE

Atrás da porta
uma prateleira, livros, alguns objetos
entre eles cinco fotos antigas

A cama larga, dois lençóis mal dobrados
um branco, outro amarelo

Sobre as costas o casaco cinza

os olhos

14 setembro, 2005



"Não houve nenhuma resposta, nenhuma revelação. Não sei que pergunta era."

gostaria de transcrever tudo, mas o tempo e o espaço não me deixarão. retorno a esta mesma entrevista meses depois e ela, assim como os poemas do helder, continuam me deixando sem (ou seria com?) chão, comichão:
trechos da entrevista com herberto helder publicada na revista inimigo rumor 11


"(...)Escreve-se um poema devido à suspeita de que enquanto o escrevemos algo vai acontecer, uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará tudo. Como na infância, quando se fica à porta de um quarto obscuro e vazio. Ficamos durante um minuto, uma brisa levanta-se nos confins da obscuridade: um redemoinho no ar, uma luz, uma iluminação talvez? Estamos prontos para o assentimento. Outro minuto, cinco, dez, ali, diante do anúncio suspenso e ameaçador: não acontece nada. Poder-se-ia esperar um dia inteiro, dias seguidos. Às vezes pára-se no meio de um jardim ou de um parque ou de uma avenida deserta. São variantes do quarto. Acontece o mesmo, quero dizer: não acontece nada. A suspeita apenas de que nos aguarda uma espécie de graça reticente, um dom reticente. Ou contempla-se um rosto, alguém que se ama, um ser imediato; ou então um rosto desconhecido, defendido. Pensamos: é uma vida nova, uma força nova e profunda, é uma paisagem misteriosa, profunda e nova que se relaciona intimamente connosco: vai revelar-se. E a outra pessoa olha para nós perdida nas perspectivas inquietas da nossa contemplação. E recomeça-se. O mesmo, sempre. Nada. (...)"

"(...) ...há uma expectativa ardente, uma ardente pergunta sem resposta, uma perplexidade ardente que me concedem um centro, um ponto de vista sobre a debandada das coisas, coisas centrífugas para diante, nos dias, no caos dos dias, centrífugas para trás, nos instantes mais densos da memória(...)E então eu sei: respiro nessa pergunta, respiro na escrita dessa pergunta. Qualquer resposta seria um erro. (...)"

"(...) No entanto, repare, ou actuamos nas zonas do quotidiano de onde não foi afugentado o maravilhoso ou existem outras zonas, um quotidiano da maravilha, e então o poema é um objecto carregado de poderes magníficos, terríficos; posto no sítio certo, no instante certo, segundo a regra certa, promove uma desordem e uma ordem que situam o mundo num ponto extremo: o mundo acaba e começa(...) A acção é a nossa pergunta à realidade; e a resposta, encontramo-la aí: na repentina desordem luminosa em volta, na ordem da acção respondida por uma espécie de motim, um deslocamento de tudo: o mundo torna-se um facto novo no poema, por virtude do poema - uma realidade nova.(...) porque o mundo, pela acção dessa forma cheia de poderes, se encontra nele inscrito: é registro e resultado de poderes. E temos essa forma: a forma que vemos, ei-la: respira, pulsa, move-se - é o mundo transformado em poder de palavra, em palavra objectiva inventada, em irrealidade objectiva(...) um objecto pode ser útil ou decorativo, e a poesia não o pode ser nunca. É irreal, e vive. (...)"


(daqui a alguns dias, mais trechos serão publicados aqui)

07 setembro, 2005

Poema do Beco

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a
linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco

Manuel Bandeira
paola,

La Penélope inmensa de la luz teje una noche clara

04 setembro, 2005

Quando a Yemanjá sai do mar, ela procura a praia guardada pelas imensas jabuticabeiras que servem para o pé de maracujá doce enrolar seus ramos.
Ela escala os galhos sem usar os pés.
Senta-se encostada no tronco e amarra seus cabelos com a fivela de conchas, ofertada por um homem feliz de sandálias de couro.
Deixa seus olhos admirarem galhos, formigas, folhas e esparsos raios de sol.
Inspira, esfrega as mãos e com um sorriso escolhe um maracujá.
Fura a casca com as unhas pintadas de branco e descobre o miolo cheio de pequenos olhos intensos.
Tão doce a polpa para ela toda feita de água salgada.
Tão amarela e laranja para ela irradiada do misterioso azul.
O som espiralado do ir e vir das ondas faz Yemanjá olhar pra o horizonte distante, que une em apenas uma linha o céu e o oceano.
Ela salta da árvore
Brinca com os caules espiralados do maracujá
Caminha até a beira do mar
E some nessa próxima onda.................