12 março, 2005

vicente aceita o convite de antônia e escreve

antônia disse escreva algo. sim, escrever algo, mas o quê? escreva em russo. mas não sei russo. então escreva sobre a rússia, só não pense muito, é só escrever. não, não é assim... . vicente sabia que sua escrita não é deslizamento e ainda mais não possuía conhecimentos suficientes do grande urso branco, poderia inventá-lo, porém seus dedos estão com ferrugem até os ossos, difíceis de articular. estava velho demais para isso tudo. la chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres. não, você não leu todos os livros, meu caro. eu sei, eu sei. então, por que isto? sensação que me atravessa quando encaro a folha branca, inexorável. ah, sim, um cansaço antecipado de todas as palavras? é, quase isso, sim, acho que sim, mas são elas que estão cansadas e desgastadas. você já as colocou para descansar um dia? impossível, antônia, não consegui nunca me comunicar com estas ingratas... ah...tô um bocado aflito, uma angústia não-sei-o-quê... . talvez você não deva culpar as palavras por uma exaustão entranhada irremediavelmente na sua própria carne... olha... quer ouvir ella? ah, sim, até porque não sei se já a escutei algum dia, põe aí... . antônia acelerava cada vez mais, um tanto serena, exceto seus pés. os olhos de vicente dobraram-se sorrateiros para a esquerda, tentou vislumbrar a luz dos cílios da companheira. os olhos eram tão somente penumbra.