29 setembro, 2005

folhetim

I.

O livro de capa escura restava único sobre a cama. Abriu em uma página qualquer; Memória: o espaço em que uma coisa acontece pela segunda vez. Paul Auster, página 96.
Poderia levar aquele livro, mas colocou-o no mesmo lugar, com cuidado extremado - como se ela mesma tivesse ficado no meio daquelas folhas, marcando a página.

Recolher os papéis das gavetas, lembrar de revistar o quartinho nos fundos e escrever o bilhete derradeiro. Abrir as janelas, todas elas, colocar água nas plantas. O que escreveria? Não conseguia escolher as palavras.

Sentou-se na cama, passou a mão sobre a capa do livro. "As coisas estão feitas, as gavetas limpas, etc etc, passo amanhã pra deixar o dinheiro". O sol bateu no seu olho esquerdo, um filete de luz escorregava pela fresta da janela. "Passo amanhã, deixo o dinheiro num envelope na portaria, obrigado (quer dizer, obrigada), adeus". Era isso? Seco demais.

Ah, ainda tanto por fazer.

Desviou os olhos da luz, puxou uma das gavetas abarrotadas ao lado da cama, mas não recolheu nada. Só fazia reescrever as palavras na cabeça. "Deixo o livro, é presente; saudades".
Mas que coisa, que palavras tão medidas, contas pequeninas de palavras. Mania de criar gestos inversamente proporcionais às suas paixões. Queria tanto o drama, a lágrima, os silêncios suspensos! "Adeus, amor meu, tão meu! Toda a minha saudade". Sentiu um lampejo de alegria, um tremor no fundo dos olhos. Mas depois riu, quanta besteira. E foi abrir as janelas.