09 dezembro, 2006

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Gonçalo M. Tavares, do livro 1



Ninguém está preparado para o massacre. A criança cresce porque lhe prometem a calma. O olho abre-se porque lhe prometem beleza.
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O filósofo criou inimizade às decisões, é o inverso do animal homicida e da planta que salva. Torna-se uma bela voz, alguém cuidando do que existe antes da conclusão, alguém disponível para o dia seguinte.
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Fórmulas para a constituição do coração, do ferro, das abelhas. O mundo diverte-se com a ingenuidade dos homens, com os números exactos que o convencem.
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Inscrita nas tuas forças uma noite desleal cresce.
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Toda a Lei cantada se torna doce. A injustiça engolida pela melodia certa dá a ordem de que a cidade necessita.
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Amanhã o vento irá encher de rubor o palácio. Toda a construção se envergonha perante o mais breve movimento da natureza. O vento exibe a viagem que as coisas pesadas não conseguem. Pleno de segurança, o palácio só deseja cair.
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Renunciou à realidade porque esqueceu a linguagem que os pais ensinaram. Começou a ver coisas. Nunca a linguagem descobriu um indício. E ele descobriu um indício.
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Se nenhuma flor muda a tua filosofia e se também nenhum animal a muda, eis que foste derrotado pelo que é falso. Os animais comprovam a linguagem que usas. Como se os melhores métodos humanos fossem aqueles que a natureza considera admiráveis.
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Nenhuma modéstia destrói, e aquilo que pelo menos uma vez não é destruído não ficará forte.
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Nem sempre os dias obedecem a fórmulas. Na cidade, com intervalo de meia hora, os melhores dedos contam diamantes e roçam nos seios da mulher que amam. Os ossos são múltiplos e, apesar de escondidos, tornam semelhantes entre si os cidadãos saudáveis. Mas o tráfico mais perseguido em certos edifícios públicos é o dos segredos. O homem rodopia atrás dos acontecimentos e é editado, como um livro, pelo trabalho que aceitou. Atirado és para o mundo pelas ordens a que obedeces.
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A habilidade é inútil no Tribunal. No jardim cada flor rasteja, mesmo que finja subir e ser bela. E o homem em frente à lei escuta a orquestra forte que toca o que ele não conhece. E se quiser também cantar será admoestado. Perante a Lei a amizade não é argumento, para os juízes cada sensação humana é desperdício. Mas o sofrimento não é uma música.
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Pelos ruídos entenderás o trabalho a que um homem se entrega e pela música entenderás a dança. Pelo silêncio entenderás a mulher a que o homem se entrega.
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Um fósforo é mais generoso que uma tesoura. Como explicar este pressentimento sem falar numa Língua afirmativa, concludente?
Utilizar a prudência na linguagem é um crime, e faz com que a cidade não descubra.
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Não há sistemas morais que resistam ao egoísmo da cidade. Cada um foge em direcção ao que ama. Isto é: em direção ao que é capaz de o fazer matar.
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