25 março, 2005

Antonia e Vicente,

Há quanto tempo não lhes escrevo uma carta? Estranha amizade que se faz de palavras cochichadas. Segredos desencontrados que eu forçosamente transformo em frases. Estou desde as cinco da tarde dentro desse apartamento. As paredes me comprimem. É fatal olhar para o corredor. Há vento. As extremidades do corpo estão geladas. Sinto um gosto ruim na boca e o coração bate devagar por ninguém, muito menos por mim. Ele é um autônomo e eu estou apaixonada sem ele. Descompassada como quem bebeu muita vodka e foi ler um conto russo ouvindo Rachmainov. Tento criar, mas meu corpo hoje descoloriu - se. Não há sal nem café que me mova.
Hoje eu preciso tanto dos olhos de vocês lendo algo que não pode ser escrito. Essa carta é apenas um inócuo adjetivo dessa densidade vazia que me tomou. Mas é o único gesto possível. Cada palavra digitada é uma ação que faz cócegas na minha inércia.
Busco aceitar esse estado. Estou irreconhecível. Os lábios não querem sentir a câimbra suave depois de beijos demorados e nem despejar palavras exageradas. Hoje estou aqui para aprender a sentir isso, mas isso (eu sei), jamais mostrará sua face. Isso não usa máscara. Isso é o não isso.
Escrevo para amigos que posso, quando o sol voltar a arder nas entranhas, amar. Agora não amo ninguém. Sou apenas uma respiração superficial, olheiras e praticamente apenas um organismo funcionando e mãos datilografando.