25 março, 2005

ana leite e joão valdevino
(para g.h.r.m.)


atrás da tinta

Deitado na cama, olhava o teto descascado. Gostava muito de ficar assim: quieto, atrás dos pensamentos. Podia ficar horas estendido naquele colchão fino – o olhar pra cima, piscando muito pouco, a cabeça cheia de imagens que as paredes remendadas lhe davam.
O quarto era pequeno. Nele cabia uma cama e um guarda roupa de uma única porta. Um pedaço da janela se escondia atrás do móvel, de modo que o sol não entrava por inteiro. Mas gostava de ficar na sombra, sentindo escurecer.
Há dois meses já começara a sentir saudade. Conseguira reservar mais tempo do que a habitual meia hora para, nessa última semana, ficar observando o teto com cuidado e esgotar as histórias que ele lhe dava. Hoje ficara quase o dia todo assim, olhos secos, imaginando coisas ainda não pensadas.
Estava no meio de uma história comprida quando ouviu as batidas na porta. Perdeu-se das imagens e não respondeu. Ficou calado, com raiva, sabendo que assim como quando a gente sonha e é acordado de repente, ele não se lembraria daquela história depois.
Ouviu seu nome duas vezes antes da porta se abrir.

A mala já estava pronta, do lado da cama.