28 fevereiro, 2005

Para sentir

Digito com muita força. Crio um ritmo duro para tentar animar os sentimentos. Quero das frases tudo o que está além da alma, tudo o que não é puro. Adjetivos, enfeites, exageros. Algo incoerente, feito de carne.
Dou tiros. São p-a-l-a-v-r-a-s.
E
não matam minha mortalidade; esse meu único sentido
Fatal beco sem saída
Imagem quente

Se você está comigo, entre quatro paredes, você me é.
Ali seu corpo acontece
Eu ouço
gestos
estalos
passos
você acende um cigarro
Naquela sala, há uma janela que reflete sutilmente o ambiente.
Ás vezes eu encosto a mão no seu reflexo apagado no vidro.
Digo que estou sentindo a temperatura da rua.
Mas
estou tocando
o que você me é.
Carta para Paola

O tempo está estranho e faz tempo que não te vejo. Do lado de cá, sinto a mudança do vento e penso que talvez você vá aparecer. Não faço cobrança de sua presença; sei que estou também por aqui em uma espécie de exílio, resolvendo nós desimportantes - mas que precisam ser desatados.

A carta em questão é um pedido para que você aceite meu fragmento em jazz. Improvise comigo. Já que não tocamos bem instrumento algum, podemos experimentar a letra como som. E veja que curioso - sempre ouvi a voz de tuas palavras no timbre de uma flauta transversal. Ainda não descobri o tom das minhas e, talvez nessa troca, eu consiga me escutar escrevendo.

No mais, saudades.

Com mesuras e salamaleques

A.

22 fevereiro, 2005

"Nem tudo se pode saber ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcançou".

Rilke



Olhou-o de soslaio. Confiava no silêncio, não disse uma palavra. Tateou na memória textos antigos; compreendeu-se no verbo alheio. Sorriu.

Ah, e sentiria saudade. Tão estranho.

18 fevereiro, 2005

Jazz

proposta para paola
fragmento 1, por antônia


... ouve Ella no carro. Don´t change a hair for me. Sente os olhos úmidos demais. Deve ser a poluição, pensa. Escurece rápido, é quase noite (o céu é um azul-marinho profundo de poucas nuances de cor). Liga os faróis, entra na rodovia. My funny valentine, sweet comic valentine. You make me smile with my heart. Your looks are laughable, un-photographable; yet you´re my favorite work of art. Olha o painel - cento e vinte quilômetros por hora. Solta o acelerador, muda de faixa; não preciso chegar na hora. Sente uma gotícula ganhar forma no canto de um olho. Ah, meu Deus, tanta coisa – pensa, enquanto...

17 fevereiro, 2005

lurdinha
in: desaparecimento

Passados outros dois anos sobre os sete de espera, Lurdinha, desiludida, desistiu de esperar.

14 fevereiro, 2005

desaparecimento

Arrumou dois volumes velhos de seu autor favorito, uma muda de roupas, a escova de dentes, uns trocados e desapareceu.

Dez dias de silêncio, começaram a sentir sua falta. Ligaram para sua casa, deixaram recados - e nada. Chegaram a bater no apartamentinho; nenhum sinal. Bilhetes foram deixados debaixo da porta, pessoas começaram a se ligar para trocar informações sobre seu possível paradeiro; conhecidos que não acreditavam em Deus rezaram pela sua alma.

Mas, a despeito de todos os esforços, sete anos se passaram sem notícia alguma.
Alguns de seus amigos ainda sonham com ele. Outros juram tê-lo visto naquele bar, naquela esquina, naquele orelhão. Mas muitos esqueceram.

Lurdinha, naquela época, quis ter ido ao pai-de-santo. Mas, como sua irmã não deixou, ficou em casa esperando.
Espera até hoje e ainda acredita que ele vá voltar.

10 fevereiro, 2005

o arrependido

A carteira ainda estava ao lado da cama. Guardava no couro velho as impressões dos dedos angustiados que a largaram, sem pressa, sobre o criado-mudo. E que depois tentaram segurar o corpo pela ponta da janela, quando já era tarde demais.

Porque já havia se atirado. Não fora lançado por ninguém. Desejou morrer e largou-se pela janela, mas chegou a arrepender-se no minuto derradeiro, num lampejo de saudade - e não consegui voltar atrás. Não conseguiu retornar ao quarto e desfazer o caminho até a janela, desfazer a carteira de couro com as marcas dos dedos sobre o criado.

Precipitou-se sobre o tempo e não desfez o salto - que, do alto de dez andares, foi mortal.


09 fevereiro, 2005

Ivone

Caminhava apressada pela calçada, tentando recuperar os minutos passados. Quase corria, mas o ar já começava a faltar e sentia a dorzinha do lado dos que jamais andam depressa.

Ivone morava com a irmã Iolanda, mais o sobrinho Carlos Augusto e Floriza, uma gata malhada. Todos em um sobrado amarelo, que cerrava suas portas, todos os dias, às oito horas da noite.

E Ivone estava atrasada. Mais de meia hora avançavam sobre as oito soberanas, que determinavam o fechar dos ferrolhos das portas. Aquele era um dos muitos hábitos que Ivone e Iolanda mantiveram depois da morte da mãe: oito horas no relógio, hora de se recolher. De fechar todas as janelas, de botar a gata na lavanderia e se preparar pra dormir.

Mas naquela noite, pela primeira vez em cinqüenta e sete anos (e quase dois anos depois da morte da mãe), Ivone se atrasou.


chegou

Uma cadeira de frente para uma parede
A parede é branca
A pessoa sentada na cadeira não colocaria nada na parede.
ela não está olhando para a parede
ela está lembrando
do dia em que ficou velha
foi quando a vizinha tocou a campainha
perguntou se ela não queria alguma coisa da feira
a vizinha era jovem e jamais fazia as unhas da mão
Ela aceitou a oferta
Reparou que suas pernas doíam
O sol lhe cansaria
Ela já estava velha
Afinal de contas
Agora ela ficava em casa
Sentada na cadeira de frente para parede
Esperando a vizinha chegar com as compras

08 fevereiro, 2005

O CONVITE

belo dia arrumou suas gavetas
para fugir de uma saudade
e encontrou folhas amareladas
escritas com tinta vermelha
e letra adolescente
de outras saudades

pegou uma caneta azul
acrescentou novos rabiscos
pôs tudo em um envelope pardo
e enviou para Paola

que do outro lado da cidade
leu tudo
bebeu seu café
e pensou

e foi atrás de suas gavetas