30 agosto, 2005

O que seria possível se conseguíssemos descer em uma escada para o fundo do nosso corpo?

A pergunta, que Antônia não sabe se está bem traduzida do japonês, foi feita por Hijikata Tatsumi.

26 agosto, 2005

Na época em que João J. escrevia cartas a Antônia

ela era menina e enfrentava o mundo com o silêncio. E se achava muito rebelde, descendo sempre em altura com seus infinitos não ditos e olhar firme nos olhos de quem ousasse a olhar.
E João J. lhe escrevia cartas.
Cartas fundas, desenhadas com letra corrida, quase deitada na palavra seguinte - sempre muito bela. João J. só sabia desenhar palavra bela.
E foi assim que João J. ganhou a rebelde Antônia e fez com que ela, menina, quisesse ser João J. quando crescesse.
Passados tantos anos, Antônia ainda quer ser João J. - que, até hoje, a toca em profundeza, com as cartas antigas que ela encontra, de vez em quando, escondidas no meio de um livro.
Escrevo como que para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha.

C.L.

25 agosto, 2005

UM CANTO PARA MUSSUEMBA


Ó mãe dos gafanhotos
sentados na lavra da boca deserta:
quantos comboios pariu a tua fome
sobre tijolos gravados ao corte da língua?
O abecê do tempo sangra no pilão
e a chuva de Abril nos cafeeiros
é a mulher kilombo, dizem
morreu um leão no fogo do teu ventre
onde caminhei de animais na mão.




(poema do angolano josé luís mendonça, confiram outros do mesmo peso em peledelontra.zip.net)

07 agosto, 2005

leitura-madrugada 2


DEPOIS DO LIVRO, espera-se
encontrar a mesma rocha
esfarelando a mesma onda,
a praia familiar contornada
pela mesma rua diariamente,
e atrás ainda da paisagem
litoreânea, contaminada
pelos olhos sem urgência,
sob o assédio do visível,
espera-se encontrar a recusa
da paisagem, o instantâneo
e primeiro espanto - feche
o livro, e tão logo se desfaz
essa recusa, desfaz-se ainda
a própria espera, rocha e onda
devolvidas ao que sempre
foram quando jamais vistas,
quando nunca mais narradas.


epílogo de cosmologia, de marcelo diniz
leitura-madrugada 1


CHIAROSCURO



talvez sob a noite
calejada de grilos
um
meu filho
talvez
existisse
e, baldio, evitasse uma sílaba
enquanto
pastoreia
o caminho do brinquedo:
um ferrorama
que não carrega vozes
em suas vísceras plásticas
que não atrasa
como os trens do interior
e - alheio aos
olhos de gude -
apenas cumpre
os trilhos
desta noite
de pânico e
esgrima



do livro primeiro as coisas morrem, de diego vinhas.

05 agosto, 2005

ka cho fu getsu

É preciso dançar com a alma.

Kazuo Ohno

04 agosto, 2005

meu sopro, teu sopro

Oh quisera Deus que um dia de repente amanhecera teu sopro a preencher o verbo que me falta - e tua voz silenciando os ruídos, clareando becos, faria amanhecer em mim a tua vida e inundaria de vez minhas cansadas palavras.
nina, de anton

Entrou silêncio escorregando, mas ele a notou, olhou graúdo - procurava sua Nina atrás daquela magreza, atrás da sua memória. Ela se segurava pela respiração e entendia. O que importava naquela penumbra era a capacidade (dele, dela) de suportar.

02 agosto, 2005

Jetez-moi dans la mer...
car je sais que c´est moi qui attire sur vous cette grande tempête.

JONAS, I, 12.

01 agosto, 2005

os pés afundando no solo e ela subindo em altura,

ah se fosse um rio,
seria tão largo e tão fundo,
que para atravessá-lo o barqueiro teria que ter fé, paciência, querer,
teria que afundar o pé no lodo
para achar o caminho na altura.

ah se fosse um rio.