O NADA
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Despertei uma noite horrorizado
sem ter mais uma língua minha
nem linguagem minha e sem nenhum sinal de escrita,
sem me lembrar
de nenhuma letra do alfabeto nem de palavra alguma
em qualquer língua
e o terror foi então infinitamente elementar,
talvez o medo de um homem caído do alto de uma
árvore e sem perceber
chão nenhum por baixo
e como o medo de um homem atirado a um escolho
quando o navio
já desapareceu e a maré sobe e submerge-o
como o medo do pára-quedista cujo pára-quedas se
recusa a abrir
e como o medo de um seixo no vazio de um poço
e esse medo era sem voz sem sílabas sem letras
sem palavras
de modo algum metafórico. Sim, de modo algum
metafórico
e eu ia à deriva nas trevas
e como se não fosse eu na noite
não havia nada a que se agarrar nem a que se apoiar
e tudo era arrancado a tudo
a voz sem palavra nem caminho
eu mesmo sem mácula e sem encargo
e nem uma corda de forca para segurar
nem mesmo um abismo onde ficar pendente
e eu não sabia quem sou nem o quê
........................ — e eu já não era.
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(Aharon Amir. Tradução Cecília Meireles)