mais perguntas sem nome e sem respostas, mais herberto helder:
(...) "...vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcções o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque só se consegue isso com inocência. E se a inocência é uma condição insubstituível de escândalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui também um revés: pois há uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriámo-nos nas coisas; a inocência deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto; o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos próximos como instantâneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demoníacas, o abismo junto à dança, a noite que se vai insinuando a toda altura e largura da luz, tudo isso invade a inocência - e então já não sabemos nada, por exemplo: será inocente a nossa inocência? A inocência é um estado clandestino na ditadura do mundo; tem de ser astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar; seduz as criaturas, responde a memória com a memória, a sua fala perante o demoníaco entretece-se com a fala demoníaca. E temos assim a inocência envolvida nas turvações da guerra, e é o guerreiro quem alimenta a guerra, é ele que alimenta o outro guerreiro, a sombra. Na verdade a inocência não existe, não existe o demoníaco, senão como partes dinâmicas de um poder, e não exprimo aqui nenhuma ideia moral, política, institucional, mas uma ideia da ordem das coisas, forças e expressões. A magia, esse reino tão complexo de poder, é um casamento natural mas dramático, uma coordenada desavença de níveis de consciência, formulações do desejo, domínios da realidade, debates da pessoa com a realidade. O objecto que eu agito mortiferamente é uma arma ambígua. Como se eu estivesse metido numa espécie de guerra santa: a minha inocência é assassina. (...)"
"(...) Ora é preciso intoxicar-se com a paixão do perigo, desenvolver-se a gente dentro dessa paixão (...) A paixão é a moral da poesia: arrisquem a cabeça se querem entender; arrisquem o corpo, a sua medida, se pretendem descobrir o centro do corpo (...) De sorte que esse tal poder é o da própria paixão: ninguém consegue aventurar-se na poesia coleccionando objectos - estátuas, estatuetas; jóias, devem ser jóias vivas, olhos de leoas maternas, insuportáveis coisas que nos contemplam, morre-se de se ser assim contemplado. E então é necessária uma nobreza indizível, por exemplo: fixar de frente os olhos maternos, leoninos, e os nossos olhos ficam calcinados - o episódio, conheciam-no os antigos, dizia-se que os deuses cegavam quem os olhasse. Refiro-me a essa nobreza: como se deixássemos de ser nós mesmos, uma espécie de impassibilidade enquanto se vai ficando cego na floresta das leoas. (...)"
( na próxima semana, a terceira e última parte)