27 abril, 2005

.


alguma pintura: um estudo






CONTRA-LUZ

dorso,



penugem,



dourado

estoura

entre

dedos,



PÉTALAS,



aci-

dente,

curva

rosa da nuca:



qual inseto

fere

lóbulo nu,


(corte veloz,

cheiro,

sombra,

e atrito)


golpe de luz

sobre

ombros:

AQUI,


lábios

certeiros,

definitivos.


.
.


"Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas
as folhas dormindo o silêncio
- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
e a miséria dos minutos,
e a força sustida das coisas,
e a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo, o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra o tempo e a carne."






herberto helder

.

25 abril, 2005

Homem- gato
Para subverter seu tédio, o homem adaptou certos rituais antropofágicos. Como quem recita mantras, ele passou a repetir MIAU MIAU MIAU, pois ele nunca viu seu gato Panovski entregue ao vazio.

24 abril, 2005

hero

na verdade
eu queria mesmo
era ser um samurai
feliz aniversário

hoje te vi, fulô
debaixo do sereno
serenando

hoje é teu dia
e essas palavrinhas
são pra ti

vai fulô, vai
segue firme na subida

23 abril, 2005

a descida de Dante
pelo corpo de Lúcifer:
"vi então que estava subindo"

"Ergui os olhos e vi, iluminando as encostas da colina, o planeta que sempre indica o bom caminho; isso fez diminuir o assombro que durante toda aquela angustiante noite turvara o lago do meu coração. Como o náufrago que, mesmo salvo das bravias ondas, fita o ameaçador mar no qual se agitara, assim meu ânimo, tremendo ansioso, pôs-se a remirar o espaço percorrido, que nenhum homem jamais cruzou ileso. Depois de dar algum descanso a meu corpo lasso, segui viagem pela subida destera, firmando bem, em cada passo, o pé mais baixo".
Luísa tocou a campainha para comprar gelinho. Viu aparecer no fundo do corredor lateral a mulher de cabelos negros, longos e espinafrados. A vendedora perguntava qual sabor. Luísa sabia todos de cor: limão, morango, abacaxi, amendoim, coco. Antes de proclamar o último sabor da lista, a mulher respirava fundo, levantava a sobrancelha direita, mirava Luísa nos olhos e falava “groçelha”. A menina ficava feliz, adorava a língua presa da vizinha.
"... não morreria nem por mim..."

22 abril, 2005

francisco alvim



AQUI DENTRO

Já tive que matar




em: POEMAS [1968-2000]

20 abril, 2005

peso das conjugações
É?
Será?
Enfim, sigo, escrevendo sobre o que pode ter sido imaginado, mas já virou matéria para frases. E o que não é matéria para palavra, se só ela pode camuflar o medo desse quarto escuro, povoado por terríveis monstros que moram debaixo da cama e se eu me distrair e pender o braço para o lado, eles vão me morder e levar-me para outro quarto escuro, com muito mais monstros. Então fico aqui nessa cama estreita, onde, deitada, eu sou, tu és, ele é, nós somos, vós sois, eles são.
Porque, convenhamos, monstros não existem e por isso não podem falar.

19 abril, 2005

antônia ouve
ao pé do ouvido:

"e sou terrivelmente feliz em meu inferno, e escrevo."


Desperta.
Estende a mão para tocar o braço de P.


A - Onde está V.?

P - Não sei.

A - Você ouviu?


P. olha para A.
P. pisca em resposta.


A - P.

P - O quê?

A - Acho que estou doente.

(...)
, ao pé do ouvido; para paola, antônia e demais cronópios,








o áspero aluvião da história passa , urgente corre e nos arrasta, inexorável, e não há contra ele, para detê-lo, sequer um aceno, e inútil debater-se ou implorar socorro, possivelmente não restará traço nenhum destas existências tão poucas, furiosas, distraídas,

, som, fúria e estômago,

, e o tempo soprando paciência,


"...este jogo na borda da sacada, este fósforo ao lado da garrafa de gasolina, este revólver carregado na mesa de luz – uma busca intelectual do próprio romance, que seria assim como um contínuo comentário da ação e, muitas vezes, a ação de um comentário. "

"que sim, que não, que onde está está."

"Às vezes tem uma efêmera consciência de que a cada tantos segundos as pálpebras interrompem a visão que sua consciência preferiu entender como permanente e contínua; mas quase de imediato o pestanejar volta a ser inconsciente, o livro ou a maçã firmam-se em sua obstinada aparência. "

"...e outros dias caio dentro de um dos meus sapatos e sofro um golpe terrível..."

"e sou terrivelmente feliz em meu inferno, e escrevo."

"Mas já se sabe que nem todos os estranhados são poetas ou filósofos profissionais. Quase sempre começam por sê-lo ou por querer sê-lo, mas chega o dia em que se dão conta de que não podem ou não estão obrigados a essa response quase fatal que é o poema ou a filosofia frente ao challenge do estranhamento."

"...resistir à solapada deformação que o cotidiano codificado vai montando na consciência com a ativa participação da inteligência racional, os meios de informação, o hedonismo, a arterioesclerose e o matrimônio inter alia (entre outras coisas). "



e entretanto é preciso fazer,

é preciso,

é isto,

sim,

.

, desta vez preferiu tomar café sem açúcar, um rente desejo de estragar com maravilhas seu formidável e obstinado corpo, realizando, afinal, um gesto de prolongamento dos últimos acontecimentos. em cada minuto sorvia e comparava a amargura na língua com o ranço da memória recente, ainda cintilando de exasperação, mais uma confirmação de que quase nada valia a pena, de que a existência e o estabelecimento das coisas, de qualquer coisa, viva ou morta, não dependiam delas próprias, como se todas elas possuíssem um personagem sátiro apunhalando e incitando suas ações, largando-as ao léu, nada, absolutamente nada dependia das coisas, as coisas não fazem acontecer, elas se acontecem e se deixam. as vontades e desejos não dependiam das coisas em si, que se abandonavam cheias de ternura, pois os sátiros apunhalando, mesmo o café, já um pouco morno, cantando estrelas no sonolento estômago, e entretanto este inegável estar incontinenti aqui agora. a distração destes corpos emperrados, destas solas gastas da procura sem busca impunham-lhe um irrefreável sorriso das interrupções e do golpe categórico que pôs a pedra nestes pulmões, e a incomunicabilidade entre todas as coisas, e as fissuras dos desencontros recorriam depressa e sátiros atravessavam o bocejo brusco da insistência, o café sem açúcar morto de frio e era preciso fazer , era preciso, era, e,

.

18 abril, 2005

dentro do carro,
a decisão:

"é. voltarei para meudon"
escrivinhação

(...)

A. em um lugar escuro. V. entra devagarinho; acende uma vela.

A. olha para V.

A - Obrigada.

V. sai em silêncio e deixa A. sentada nela mesma, pensando sob a luz.

(...)

17 abril, 2005

de caetano gotardo para antônia
de antônia para a pessoa do outro lado da mesa
(entre cinzeiros cheios e casquinhas de pão)

Caetano às vezes diz as coisas por mim.
Como Adília diz as coisas por ele, ele me disse certa vez.

Esse Caetano tão querido, que divide comigo a sensação de ser a Maria Cristina Martins, de Adília,

[Ah quem me dera um incêndio
e eu no meio das cinzas
os salvasse

Podia ser muito feliz
se não fosse muito infeliz

Tem frio
um frio muito fino

Quem me dera uma morte como a de Don Juan
ah uma mão que me puxasse para o escuro]

me mandou:

O encontro não acontece porque nada mais parece acontecer de fato.
Estou de volta, estou de volta.

Antônia, tentando alcançar a pessoa do outro lado da mesa, entre cinzeiros cheios e casquinhas de pão, usa as palavras de Caetano:

O encontro não acontece porque nada mais parece acontecer de fato.
Estou de volta, estou de volta.

16 abril, 2005

meu je ne sais quoi
para minha personagem
favorita

ah, tão difícil, que difícil.
faço uso das repetições, esgoto tudo, tudo; te pego, te desdobro, te viro do avesso - e reitero, quantas voltas! tantas mesmisses!
e fico assim, ensimesmada, paralizada.
depois finjo que é obsessão com a palavra o que é vontade de recriar as histórias que invento pra você.
que tirei do espaço, que tirei do tempo. que joguei pra longe.

tantos sóis.

pra você, aqui está. toda a minha impotência expressiva. que tento, tão difícil, transformar em silêncio.

15 abril, 2005

Suspeito que esse cheiro é o seu.
Respiro mais fundo.
Engano-me.
Seu aroma específico só é real na sua pele vermelha de acariciante barba.
Quanta solidariedade você revela ao emprestar parte de seu perfume para os rápidos ventos da cidade.
Caridade maldosa quando meu destino está longe do seu corpo.
caminhada

já não sabia, para onde iria? mas havia tomado a decisão. era essa a escolha, seguiria com ela; adeus, querido, adeus. não quis pensar que poderia ter prolongado a despedida. que poderia ter olhado um pouco mais para o outro lado, cuja imagem ficaria fresca no fundo dos olhos (talvez tivesse sido tão bom ter o frescor daquele lado de lá enquanto caminhava para longe). mas olhou com o canto dos olhos quando disse adeus. menos porque não queria olhar, mais para não ser vista. disfarçou a tristeza e iniciou a caminhada; adeus, querido. adeus.

11 abril, 2005

"A porta se fechou às minhas costas, e eu me apoiei ao muro do andar térreo com uma vontade de sentar no primeiro degrau e nunca mais me levantar".

06 abril, 2005

escrivinhação

(...)

A. fica séria, mas logo sorri para V. com o olhar.

A - Ah quem me dera um vestido que me queimasse.

V. ri.

V - Bonito isso, moça. Lampejo teu ou...?

A - De Adília.

V. desvia o olhar pensativo. Fica um tempo em silêncio.

V - Ah quem me dera uma gravata que me enforcasse.

(continua)


enontrar-se

ontem fui só linha e, para quem se sentia invisível, ser linha já era o bastante.
Livre do compromisso de ser alguma coisa, a linha resolveu espiralar-se.
Foi quando, eu encontrei meu umbigo.

05 abril, 2005

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a questão ia e vinha, rebatia a sua cara à tapa, várias vezes, carcomia qualquer vontade de alguma coisa. vontade de quê? não, nem sabia, não valia a pena saber de nada, a inércia o tinha colocado num estado de somente perceber seus instintos, estudar as nuances e movimentos dos sentidos e sensações provocados pelas coisas de algum por quê, e agia incitado exclusivamente por esses não-desejos. até seus movimentos, quaisquer que fossem, não lhe pertenciam, e isso é que importava, a apropriação do gesto alheio, sugerida numa simples brincadeira, já lhe convinha há muito e não necessitava de maiores explicações, o resto seria presente gratuito vindo de algum tempo que não sabia onde. já não queria saber, nem não saber, queria? questão zero.

02 abril, 2005

Mulheres de tinta

Joana aceitou ser todos os olhos de todas as criaturas pinceladas por ela. As mulheres acrílicas doaram-lhe o cheiro de suas peles e suas vias secretas de sentir prazer.
Joana, uma mulher só, precisou se infiltrar pelas dobras da noite, saciar-se nos espaços entre os toques, despertar a sensibilidade sob as unhas para compartilhar sua entrega.
Joana enxergou a breve silhueta do amante com camadas de tinta. As outras mulheres bidimensionais também o amavam, também o sentiam.
Na manhã seguinte, Joana estava arredia. Ela cedeu às criações e esqueceu-se do ciúme que agora voltava avassalador, junto ao medo de se submeter aos estranhos códigos da pintura.
E Joana era de tinta também.

01 abril, 2005

beatriz, que é atriz,
é também poeta
e ainda não descobriu

"Eu poderia
agora
escrever o futuro.
O que você me trouxe, generosamente, iluminou minha caverna platônica.
Estou numa fase amorfa. Lembrando, que de um sopão nasceu a vida, certo?
Tenho dificuldade com o tempo. Não quero perdê-lo; pois parece que, perdendo-o, eu perco vida. Mas bestamente vi que não estou vivendo este tempo que busco!!!
Quero ficar em paz com o tempo. Que muda as coisas, que as amadurece...
Hoje temos que ser jovens, dispostos, "pra cima", novos, re-novos.
E o amarelado do vestido de noiva da avó se tira com OMO!!
Cresci assim. E travo uma luta árdua com minha carne.
Mas meu espírito há de vencer (...)"


Beatriz, moça de personalidade de fogo e trovão, eu conheci de trança no cabelo, em cima de um palco. Eu escrevia uns diálogos pra ela e ela reescrevia com o verbo falado. De troca em troca, eu no papel e ela em cena, construímos juntas uma personagem. Uma personagem que escutava um violinista tocar, todas as noites, através das paredes de sua casa. O violinista, na história, jamais teve sua figura revelada - ficou na imaginação de sua personagem e nas notas que um músico tocava em cena, à meia luz, de costas.

Já faz tanto tempo toda essa história.

Hoje continuamos com os diálogos que uma completa para a outra.
E de vez em quando Beatriz me manda seus verbos, que eu recebo e me aproprio.

Esses que recebi hoje faço meus.
diálogo


Tenho me sentido estranho; ele lhe confidenciou, de repente, no respiro entre a frase recém ouvida e a outra que sabia que iria escutar.
Voltavam de carro da cidade para casa, a estrada vazia e uma vontade repentina de desabafar.

Estranho como? – ela perguntou, um pouco confusa com a interrupção.

Não sei. Parece que tenho que fazer muitas vezes ao dia um esforço tão grande. Quase físico...

E calou-se, tão de repente como começara.

Esforço pra quê? – perguntou devagar, com receio que ele não continuasse.

Pra não ficar triste.

E terminou a frase já arrependido do início daquele assunto.

Mas ela não chegou a entender seu ficar triste. Mesmo assim não perguntou. Achou melhor deixá-lo falar livremente, o que quisesse (e se quisesse).

Do outro lado, ele se sentia incomodado. Ou quase estúpido, deixando de terminar as frases - e pedindo, nas reticências, que ela continuasse perguntando.