27 março, 2005

nota de inverno sobre impressão de verão

o vento mudou
está tudo virado para o lado contrário
e a gente tenta
ah, a gente tenta
exercita a paciência
a bem querência
mas não há palavra
e não há gesto
mais velozes do que o vento
quando, do outro lado,
há silêncio e há ausência
.

que o coelhinho asse empalado
derramado em calda de chocolate

bon appétit

.

26 março, 2005

sofridos cigarros

em verdade
em verdade, vos digo
adianta de nada
haverá sempre uma fresta
por onde entrará o trago

25 março, 2005

ana leite e joão valdevino
(para g.h.r.m.)


atrás da tinta

Deitado na cama, olhava o teto descascado. Gostava muito de ficar assim: quieto, atrás dos pensamentos. Podia ficar horas estendido naquele colchão fino – o olhar pra cima, piscando muito pouco, a cabeça cheia de imagens que as paredes remendadas lhe davam.
O quarto era pequeno. Nele cabia uma cama e um guarda roupa de uma única porta. Um pedaço da janela se escondia atrás do móvel, de modo que o sol não entrava por inteiro. Mas gostava de ficar na sombra, sentindo escurecer.
Há dois meses já começara a sentir saudade. Conseguira reservar mais tempo do que a habitual meia hora para, nessa última semana, ficar observando o teto com cuidado e esgotar as histórias que ele lhe dava. Hoje ficara quase o dia todo assim, olhos secos, imaginando coisas ainda não pensadas.
Estava no meio de uma história comprida quando ouviu as batidas na porta. Perdeu-se das imagens e não respondeu. Ficou calado, com raiva, sabendo que assim como quando a gente sonha e é acordado de repente, ele não se lembraria daquela história depois.
Ouviu seu nome duas vezes antes da porta se abrir.

A mala já estava pronta, do lado da cama.
nossos gestos de recuo. os meus passos engessados.
teu enlace. tua face. as pupilas fatigadas.
as palavras aos pedaços.
os disfarces, os disfarces.
Romã
É a fruta de um amor assimétrico.
Granada, em espanhol.
Era madrugada.
Estávamos sentados na areia de uma praia de Barcelona.
Ele descreveu a geometria da fruta.
Eu não conseguia visualizar.
Levantou-se.
Disse que não gostava de lugares muito abertos.
Fomos ao supermercado 24 horas.
Ele comprou três granadas.
Fomos para o apartamento dele.
Brutal navalha na casca dourada e vermelha.
Gelatina cor de groselha envolvendo sementes brancas.
Eu quis gritar.
Devorei a fruta.
Gritei.
os gestos de recuo de ana leite e joão valdevino

*

atrás dos olhos

Chegou a pensar nela no caminho. Os cabelos compridos, sempre presos. O jeito tímido, os olhos pra dentro. Estranha demais, quieta demais, sem beleza. Lembrou-se do sanduíche, já amassado dentro da sacola. Desfez o embrulho de alumínio e, já tomado pela imagem dela, a viu na cozinha cortando aquele pão, devagar, cuidadosa. Pensou nela na porta de seu quarto, encostada no batente, a luz forte entrando por trás. Ela na sombra, quase uma aparição.
E então, não parava mais de pensar.

Virou o rosto pra janela, já estava longe. Fechou os olhos pra esquecer.

Sentiu água neles. Apertou as pálpebras e saiu uma lágrima fina que não limpou, porque ninguém via e estava escuro.


atrás do sono

Ficou um tempo na cozinha depois que ele saiu. Ainda não era noite quando dormiu, estava tão cansada. De manhã, acordou mais cedo do que o habitual. Não havia sol, mas já estava claro. Ficou deitada, de olhos abertos. Lembrou de imagens de um sonho; um portão laranja, uma casa de madeira, um homem de olhos azuis e cabelos grisalhos que sorri.

Virou o rosto pra janela, já estava longe. Fechou os olhos pra lembrar.

Mas dormiu, sonhou e quando acordou novamente o sol estava alto.
Nunca mais se lembraria do portão, da casa de madeira e do homem que sorria.
Levantou, calçou as sandálias e andou pela casa vazia, sentindo no corredor a falta dele.
casa de vó

Todos os dias à noite depois da janta, minha avó oferecia café preto sem açúcar para São Benedito e a lagartixa aparecia no vitrô da cozinha para caçar moscas.
Eu participava da cena coletando com o dedo indicador as migalhas de pão espalhadas sobre a toalha estampada de flores azuis e levando aqueles pedaços dourados até a boca.
Depois, minha avó ia até o banheiro tirar a dentadura e recomendar-me usar um lenço de seda ao despir-me para não bagunçar o cabelo.
Então, o relógio batia alguma hora muito tarde e meu avô dizia: “criançada está na hora de dormir”.
Meus irmãos e eu subíamos a escada de gatinho. A Dani levava o penico azul.
Pulávamos sem parar sobre a cama até ouvir algum berro dos velhinhos.
Hoje senti saudades dos azulejos verde água da cozinha e das paredes rosadas daquela casa.
Antonia e Vicente,

Há quanto tempo não lhes escrevo uma carta? Estranha amizade que se faz de palavras cochichadas. Segredos desencontrados que eu forçosamente transformo em frases. Estou desde as cinco da tarde dentro desse apartamento. As paredes me comprimem. É fatal olhar para o corredor. Há vento. As extremidades do corpo estão geladas. Sinto um gosto ruim na boca e o coração bate devagar por ninguém, muito menos por mim. Ele é um autônomo e eu estou apaixonada sem ele. Descompassada como quem bebeu muita vodka e foi ler um conto russo ouvindo Rachmainov. Tento criar, mas meu corpo hoje descoloriu - se. Não há sal nem café que me mova.
Hoje eu preciso tanto dos olhos de vocês lendo algo que não pode ser escrito. Essa carta é apenas um inócuo adjetivo dessa densidade vazia que me tomou. Mas é o único gesto possível. Cada palavra digitada é uma ação que faz cócegas na minha inércia.
Busco aceitar esse estado. Estou irreconhecível. Os lábios não querem sentir a câimbra suave depois de beijos demorados e nem despejar palavras exageradas. Hoje estou aqui para aprender a sentir isso, mas isso (eu sei), jamais mostrará sua face. Isso não usa máscara. Isso é o não isso.
Escrevo para amigos que posso, quando o sol voltar a arder nas entranhas, amar. Agora não amo ninguém. Sou apenas uma respiração superficial, olheiras e praticamente apenas um organismo funcionando e mãos datilografando.

23 março, 2005

.

enquanto este instante desaba,
não há nada a vos oferecer, meus caros.
a saudade do difícil que não houve,
tal escrita cicatriza no desaparecimento,
com a mulher respirando certa despedida.
ouvi este chão que vos nada oferece,
rente à fábula, tarde o desprezo cai,
degolando o soluço dos vossos cactos,
e nada. ainda nada a vos oferecer.
o sol se despede do peso dos vossos cílios,
o abraço do amigo, esta pedra absoluta,
um quase que há na réstia de voz destas folhas dormidas,
recebeis uma carta de longe, muito longe, sem remetente.
retirais uma ficha do montante, cedo já o revés e pronto,
tal sinfonia não pára, as nuvens sabem muito bem disto,
assim como os barcos, na insônia dos corais,
logo indiferentes ao apelo de vossos perfumes,
e nada a vos oferecer mais esta vez.
há um coro clamando, a maré se reparte em pelotões,
uma flecha na garganta dos vossos sonhos e não mais se diz.
o coro convulsa, sinos rebentam, pássaros relampejam,
definitivamente nada a vos oferecer, meus caros,
nem de cada átomo explodindo no avesso da vossa retina,
tal manhã já não é mais isto que ficou de outono
nas minhas pálpebras e o que foi embora
com o verão na ponta de vossos dedos,
tantas pétalas se dobram e se fecham mesmo por aqui,
é noite, o silêncio nasce sorrindo, isto basta.

.

22 março, 2005

naïf

paola

curiosa essa menina
que investigando sua sina
tira sons da tinta guache

e não há belos tons
que ela não ache


vicente

curioso esse rapaz
de belos verbos é capaz
cria sons de seus fonemas
em cada um de seus poemas

e não há bela palavra
que ele não vá atrás

21 março, 2005

jogo de esconde-esconde
ou
melodias secas para improviso




oi, e aí, tudo bem?

tudo bem e você?

tudo certinho.

então, tá.

valeu.

tchau.

18 março, 2005

da leitura da autobiografia de isadora duncan

Se a minha virtude é uma virtude de bailarino; se muitas vezes saltei de pés juntos em êxtase de ouro e esmeralda; e se o meu Alpha e Ômega é que tudo o que é pesado se torne leve, todo corpo vire bailarino, todo espírito vire pássaro: então, em verdade, é isto o meu Alpha e Ômega.

Nietzsche

(para Paola e Vicente)
, eles sentam-se um de frente para o outro em alguma mesa exígua, em qualquer bar improvável da cidade, após uma longa hesitação só interrompida por abrupto besouro esvoaçando o campo de visão de ambos. uma moto corta a rua veloz e irritante. olho contra olho. corta. o garçom, solicitado, anota o módico pedido. corta. as xícaras ferventes se apóiam na mesa tremeluzindo na penugem dos braços impacientes. dedos tamborilando com serenidade. ambos não estão preocupados com o ritmo de suas respirações, exceto por uma ou outra entrecortada para dissipar a cresente perplexidade do momento tão esperado. uma breve mensagem, quase imperceptível, contorna os cabelos dela. as pálpebras dele se contraíam mínimas, ressentidas pela aproximação da escaldante xícara a cada gole ou pela distração da alça da blusa dela decaída pelo braço. corta. a mão apoiada no queixo não significava nada, um sinal irrisório, tanto ilusório, de como se pode interpretar qualquer gesto dela de acordo com sua vontade, a legítima queda. a realidade não diz nada, apenas solta e sugere, e ele cai em qualquer idéia que lhe apetece. é assim. ele nem desconfia da dança caleidoscópica da realidade neste piscar de pálpebras. ela, por sua vez, poderia pensar semelhante disparate, imaginando que nutriram um pelo outro melodias inexplicáveis e profundas, todas estas compartilhadas de forma insegura. combinaram que não diriam uma única palavra. não houve despedidas, nem reencontros. e foi assim até o sol dormir sobre as xícaras secas. vazias até a borra da eterna saudade,

17 março, 2005

a apropriação do gesto
ou
a. e seu novo melhor amigo
ou
como a. transformou um braço arrancando pétalas do ar


antônia e seu mais novo melhor amigo começaram, há dois dias, uma formidável aula chamada campo de visão.

no campo de visão, eles seguem os movimentos de uma terceira pessoa, até ela sair de campo de visão deles - e eles congelam. só podem se mover novamente quando entra em seu campo de percepção um movimento alheio (um braço arrancando flores do espaço, dois ombros recriando asas, alguém correndo para a direita).

a idéia é - você segue fielmente o outro e cria um novo significado a partir de seu movimento. você se apropria do gesto estrangeiro e lhe confere nova vida, a partir de seu repertório.
sua responsabilidade é sobre o seu gesto, não importa como ele chega até você.

então antônia e seu amigo começaram uma coleção de movimentos novos. andam pensando sobre as surpresas da transformação de gestos que eles jamais fariam e que estão aprendendo a reinventar.

15 março, 2005

5-7-5

faça voar, ar
a palavra escrita
na entrelinha

13 março, 2005

bon - vaso ou recipiente raso
sai - planta ou plantar

Paola, hoje é o primeiro dia da longa jornada do cultivo de minha futura bonsai. Há anos namorava as pequeninas de longe e dia desses mencionei a meu pai, como quem não quer nada, meu desejo de ter uma delas. Não sei se essa é de fato uma tradição, mas ouvi dizer que bonsais devem chegar a nós como presentes.

Meu pai compreendeu minha mensagem nas entrelinhas e me propôs um desafio - me trouxe, hoje pela manhã, uma muda de romã.

"Essa é uma das melhores mudas pra você cultivar sua bonsai".

E eu não sei nada de poda, nada de terra, de rega, nada. Bonsais são plantas formidavelmente fortes em sua diminuta aparência, mas delicadas no cultivo. Não pude não me lembrar de você, Paola, que se troca tão bem com os vegetais.

"Você acha que eu te daria uma bonsai de setenta anos? Se você quer entrar em contato com a planta, trate de aprender a cortar as raízes, a preparar o adubo. E olhe, bonsais precisam de atenção todos os dias, de quatro horas de sol todos os dias. Você inventou essa história, então comece do início, não do meio e vá até o fim".

Fiquei olhando minha muda, que já tratei de regar, de colocar ao sol. Fiquei temerosa de tirar-lhe toda a terra e fazer a primeira poda das raízes; essa será minha primeira grande intervenção na romã no caminho de sua transformação em uma bonsai. Sempre temo essas grandes ações, os cortes, as podas; a romãzinha, afinal, parece tão frágil. E se eu errar a mão?

No entanto, olhando-a contra o sol, já posso vê-la grandiosa, produzindo uma sombra pequenina.

12 março, 2005

hai kai

vicente sorri
por fim toca o verbo
no fatal beco
vicente aceita o convite de antônia e escreve

antônia disse escreva algo. sim, escrever algo, mas o quê? escreva em russo. mas não sei russo. então escreva sobre a rússia, só não pense muito, é só escrever. não, não é assim... . vicente sabia que sua escrita não é deslizamento e ainda mais não possuía conhecimentos suficientes do grande urso branco, poderia inventá-lo, porém seus dedos estão com ferrugem até os ossos, difíceis de articular. estava velho demais para isso tudo. la chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres. não, você não leu todos os livros, meu caro. eu sei, eu sei. então, por que isto? sensação que me atravessa quando encaro a folha branca, inexorável. ah, sim, um cansaço antecipado de todas as palavras? é, quase isso, sim, acho que sim, mas são elas que estão cansadas e desgastadas. você já as colocou para descansar um dia? impossível, antônia, não consegui nunca me comunicar com estas ingratas... ah...tô um bocado aflito, uma angústia não-sei-o-quê... . talvez você não deva culpar as palavras por uma exaustão entranhada irremediavelmente na sua própria carne... olha... quer ouvir ella? ah, sim, até porque não sei se já a escutei algum dia, põe aí... . antônia acelerava cada vez mais, um tanto serena, exceto seus pés. os olhos de vicente dobraram-se sorrateiros para a esquerda, tentou vislumbrar a luz dos cílios da companheira. os olhos eram tão somente penumbra.

11 março, 2005

elisabeth bishop
(usado em ensaios de um curta rodado em 2002)


CASABIANCA

Love´s the boy stood on the burning deck
trying to recite "The boy stood on
the burning deck". Love´s the son
stood stammering elocution
while the poor ship in flames went down.


Love´s the obstinate boy, the ship,
even the swimming sailors, who
would like a schollroom platform, too,
or an excuse to stay
on deck. And love´s the burning boy.

10 março, 2005

right place

perdi o caminho. volte, volte; volte pra mim. tô cansado, vou dormir. não me ligue, me deixe. naquela esquina, escorreguei. é muito pra beber. a natureza da tinta e do pigmento cria essa materialidade. é luz, é luminosidade. ouço teus passos. eu pareço um inimigo pra você? quando vier, eu falo. pergunte, pergunte. ele disse que sempre estaria por perto. não estou com medo. você e eu e o espaço entre. sente-se de novo, por favor. você não pode fazer nada. você acha que poderia? uma faca, o seu olho. olhe aqui. onde? pra esquerda? não.
incursão de antônia pelo vermelho e pelo negro

Resolveu que seria bailarina de flamenco, como a avó.

Foi atrás das cores vermelhas, do sapato preto de salto e das castanholas de Badajós. Enrolou a cabeleira negra em um coque e pôs-se toda ela espanholita, buscando, na forma, tocar seu estofo andaluz - que, à sombra, naqueles seus dias de sol intenso e calor, confortaria seus olhos escuros e quase cegos de tanta luz.

09 março, 2005

antônia, dessassossegada com a solitária escrivinhação, reproduz:



A - E o que cê acha que ele disse pra ela?
V. resta em silêncio.
A - Tá, eu sei que não interessa saber isso.
V. sorri.
A(rindo) - Quê?
A - É que sou de natureza perguntadeira.
V. olha A. por um instante antes de responder.
V - Disse, "daqui por diante, não se preocupe, o que vier a acontecer, se vamos nos encontrar ou não, isso já está à revelia do nosso domínio".
A. fica séria, mas logo sorri para V. com o olhar.
(continua)

08 março, 2005

little scene
Bob and Charlotte on the bed.
One of his hands touches lightly upon her silent foot.

CHARLOTTE
I´m stuck.

BOB
We have to get out of this place
as soon as we can.

04 março, 2005

true love

Eu amo Clint Eastwood.
Chuva presente

Pequena chuva
Pinicando a pele
São formigas atrás de doce
Escorrem pelo azul
Ponta do dedo dentro do olho
É só sal

A menina abre a boca para o céu
Formigas na língua
Água doce pela garganta
Encontra o vento

Água que me abraça
Um menino bem azul
Na rua fico prateada

Inventamos o tal do blues

02 março, 2005

she wishes she was in New Orleans, but now she counts her little fingers


you tell me


Well, I wish I was in New Orleans
I can see it in my dreams
arm-in-arm down Burgundya
a bottle and my friends and me

(...)

New Orleans, I´ll be there


but I say to you, girl


sit there and count your fingers
what can you do?
old girl you´re through
sit there, count your little fingers
unhappy little girl blue

sit there and count the raindrops
falling on you
it´s time you knew
all you can ever count on
are the raindrops
that fall on little girl blue

won´t you just sit there
count the little raindrops
falling on you?
cause it´s time you knew
all you can ever count on
are the raindrops
that fall on little girl blue

no use old girl
you might as well surrender?
cause your hopes are getting slender and slender
why won´t somebody send a tender blue boy
to cheer up little girl blue
vem cá, luíza

Acordou mais cedo naquela manhã, mas ficou na cama sob o lençol, somente as pernas descobertas. Espiava de vez em quando o relógio, fingindo-se adormecido. Desejava conseguir, num cochilo furtivo, que as horas ficassem preguiçosas. No entanto, sob as pálpebras os olhos se inquietavam, de modo que não teve jeito - o dia começava a galopes.

Quando decidiu (ou conseguiu) sair da cama, o sol já estava quente. Tentou não pensar nela, mas enquanto vestia um casaco sobre a camiseta já não pensava em outra coisa.

“Tô tentando arrumar essas coisas pra viajar, mas não tá dando tempo...”

Não sentiu qualquer ponta de culpa por não querer que desse certo aquela viagem estúpida e repentina, mas olhou-a e riu como um amigo em sincera solidariedade - conseguia, sempre se surpreendia com isso, driblar-se das emoções e atuar. E somou ao sorriso falso, sentido-se cínico: “Vai dar certo, Luíza; vai dar tudo certo”.

E as coisas deram certo, como afinal tinha mesmo que ser.
E ela partira naquela manhã cheia de ócio, em que ele se largava ao silêncio na cama.

01 março, 2005

JAZZ
colaboração de d.s.

proposta (em piano) para fragmento 1 (em contra baixo), de antônia
e jazzy sentimentos (em flauta transversal), de paola

... a lágrima seca. O vidro embaçado - há tanta vida lá fora... Tenho por princípios nunca fechar portas... Olha no retrovisor, pisca os olhos por segundos. Mira o relógio, as horas se arrastam. Ouve Ella no carro, outra voz... Mas como mantê-las abertas, o tempo todo/se em certos dias o vento quer derrubar tudo? Canta pra acobertar o silêncio – pisa no acelerador. Corre, corre – pensa, como se tivesse pressa de viver, S-O-B-R-Eviver. Ah, meu Deus, tanto por fazer – suspira, enquanto canta os pneus...
vagarosamente, ao vento

Não recordo seu rosto.
Que já misturo com outros que cruzo pelas ruas, pelo metrô, pelos pontos de ônibus - visões sem importância que a distância e o tempo depositam sobre minha memória infiél. Tento soprar a poeira sobre minhas recordações de ti, mas ela são um palimpsestro monstruoso, de endurecidas camadas.
Lanço as palavras (todas elas tão gastas) para ver se o exercício da escrita te traz pra perto, para dentro do espaço do meu pensamento.
Sei, no entanto, que é impossível capturar tua figura.
Jazzy sentimentos

... só existe essa estrada. Castelo Branco. Um ditador. Sobre suas línguas asfaltadas eu deslizo minha indiferente existência. Não posso soltar o volante, imaginar-me em algum bar de New Orleans. Eu e o comic valentine. Eu, o carro, o ditador e a noite. Como improvisar sobre quatro rodas? Acelero? Breco de repente? Paro no acostamento e aceno para os carros que passam? Aumento o volume. Don´t change a hair for me. Ele não mudaria.
queda

A sombra é chegada.

Assim como quando podia prever intensos momentos de alento e alegria antes dos ataques epiléticos, senti a luz passar por mim antes que eu despencasse em meu porão.

De onde estou agora só consigo tatear pó, teias e estranhas texturas.
Já faz quatro dias e tudo o que pude perceber é que o porão é um labirinto.

E não há velas, não há frestas; a jornada é solitária.
Não há cigarros.